Do lado de cá


Vai Dar Certo é a expressão popular mais usada em Fortaleza, principalmente nos bairros periféricos da cidade. O aceno com os polegares também é expressão corporal dos nossos. Estas referências já dizem algo sobre um projeto que se propõe a pensar a partir de onde se pisa. Um projeto que não propõe o orgulho de estar na periferia dos bens sociais, à margem dos avanços e conquistas materiais da humanidade, um projeto que não celebra as mazelas as quais somos submetidos como provação necessária à nossa força, mas um projeto que apresenta o bairro Pici dignamente como o centro do mundo. E aí sim, a partir disso, pensar os infinitos centros que existem e podem existir. Não falo de bairrismo, mas de apropriação do nosso cotidiano, reinvenção a partir de nossos costumes, falo de atuação que sugere a reivindicação de igualdade de direitos sem ter o playboy como modelo a ser conquistado, sem pensar inserção ou participação na sociedade, pois nós somos a sociedade.

Vai Dar Certo, este nome e identificação visual, uma maloqueiragem com projeção positiva de futuro, intitula um projeto que se propôs a ocupar e criar um território temporário, um lugar e conjunto de ações provocadoras de encontros que constroem novos encontros; aglutinar para expandir, misturar pra ver no que dá. Dos “piveti e cumadi” da travessa de baixo a quem vem de onde os ônibus não param pra nós.

Vai Dar Certo é uma residência artística que tem como projeto desenvolver uma residência artística, propondo o duplo sentido do termo. Assim, mesmo havendo o deslocamento de um artista para outro contexto cultural e o intercâmbio entre este, a comunidade e o espaço geográfico, a idéia aqui pesa mais no sentido de casa de artes ou de artistas, do que necessariamente um programa que consista em seguir parâmetros oficiais.

Na realidade que possivelmente desassocia o projeto desta oficialidade, estava a não obrigatoriedade de apresentar um resultado especifico e pré-determinado ao término do projeto e a independência financeira, já que não contou com nenhum tipo de financiamento institucional público ou privado. Ciente deste fator fundamental para proporcionar a autonomia, princípio básico que possibilita escolhas e tomadas de decisões, mas também sem contar com reservas na conta bancária, uma moradia comum que necessita sua manutenção através de recursos próprios, me fez como artista em residência, não ter um distanciamento da dinâmica do dia-a-dia para dedicar exclusivamente ao projeto a ser desenvolvido. Pelo contrário, foi no buscar e partilhar cotidiano do pão, assim como prepará-lo e limpar seus resquícios, que se criaram relações para formar um ambiente favorável em busca de experimentação, inovação, pesquisa e criação.

Então, a residência artística se propôs a ser um espaço de encontros e convivência, logo um espaço de humanização. Ao mesmo tempo em que tem como residente o paulistano Felipe Choco, MC e cientista social que também cuida do bar e caixa em dia de evento, mesmo sendo o protagonista convidado, tem a cearense Juliana Capibaribe, performer, que prepara ótimas e incomuns receitas culinárias e faz mediação na exposição de artes visuais, buscando o público nas ruas do entorno para dentro da residência, além de sair pra escrever nas ruas com Magosh Santiago, pixador paulistano, que limpa a casa e aprende malabares com o pernambucano Maicon Akiro, artista circense que também mostra suas qualidades de garçom em dias de aglomeração na casa. Tem o coletivo Descabelo, base inicial do sarau como poetas locais, mas que também fazia produção no evento organizando a rua para o recital, juntamente com Edvaldo Ferrer, ator, que cuidava da iluminação e chamava o público pelas ruas do bairro. Esta divisão no trabalho cotidiano sem relevar a especialização, ressalta o sentido comunitário, torna as relações mais pessoais, íntimas, sem focar o olhar em pormenores pessoais com indiferença pelo todo.

É neste contexto, que o que poderia ser uma moradia/ateliê particular, se firma como canal de integração de artistas e destes com a comunidade local, com intenção de realizar ações que favoreçam a participação, a cooperação e a troca, difundindo a produção artística sem burocracias e legitimações institucionais, desprendida de padrões de gosto e mercado. Uma produção para além das preocupações exclusivas com a estética, que busque uma arte como parte da vida em sociedade, como estímulo à pluralidade que somos e como incentivo à participação cultural, com pessoas interessadas em alternativas de fazer e divulgar arte e cultura.

É aí que gosto de pensar este pequeno grupo de pessoas como uma facção política sem caráter partidário agindo em seu meio social, com auto-organização, com disposição para trabalhar com escassez de recursos, mas também sem amarras com o estado ou qualquer poder constituído, atuando junto ao povo, com ações culturais rápidas e menos abrangentes perante a massa, mas provocadoras como uma prática de resistência, que mirando o horizonte sem abrir mão do chão e instante que se pisa, sempre serviu na oposição às misérias impostas. Talvez seja este um sentimento comum ao grupo que se formou a partir das ações na casa, onde muitos se conheceram, e que ao fim do projeto quanto espaço físico, seguiram com algumas ações no bairro, mantendo o mesmo nome do projeto e substituindo apenas a palavra residência por resistência artística.

A residência acabou, mas a resistência continua, é o que costumávamos dizer nesta fase posterior, quando recebo as noticias de outros centros do país: “eae mano, fiz uma residência artística aqui nos fundo de casa também, e já tem até a primeira artista residente”. Pronto, a oficialidade cruel e tão distante da gente, neste caso, perdeu sentido diante da realidade que construímos.

Dizer que “deu certo” como alguns amigos e amigas sugeriam, é afirmar o inverso diante da vida dinâmica de nosso tempo. Descrente de receitas e mesmo com uma grande pitada de pessimismo inerente a quem deseja mudanças maiores, continuo crendo que Vai Dar Certo.


Emol. 
Fortaleza, Ceará, 2015.